A
cultura digital, ou cibercultura, é a presente forma de se relacionar do homem
com o mundo. Embora ela se consolide de forma gradual e não homogênea no globo,
assim como os momentos anteriores da cultura,
que tiveram como núcleos a escrita e a imprensa, por exemplo, e envolva além
disso uma série de representações, é mais claramente percebida na maneira como
nos comunicamos. Se usarmos de três conceitos distintos por Lévy, a saber, sociedade,
cultura e técnica, podemos afirmar que a cultura digital produz uma nova
sociedade (entendida como a forma humana de se relacionar) e se apropriou de
uma nova técnica (conjunto de itens materiais usados nas trocas humanas).
Com
o universo digital mudaram os itens envolvidos na produção da existência que
são valorizados e, portanto, trocados entre as pessoas. Há aqui uma interface, ou seja, uma forma material
dos instrumentos de troca que nos fornecem acesso a esse ambiente digital onde
se dá a comunicação. Essas formas materiais são, dentre outras, as dos
computadores e telefones celulares atuais.
Em
segundo lugar, para além da comunicação concreta, que implica novas formas de
se informar, participar publicamente, de trabalhar e estudar, devemos levar em
consideração as representações mais ligadas ao aspecto, digamos, espiritual do homem nesse novo formato
que toma a cultura. Há novas maneiras de se realizar socialmente, expressas,
por exemplo, no símbolo de importância social que carregam os produtos Apple,
em especial entre os jovens, e que hoje dividem espaço com produtos materiais
já consolidados como as grandes marcas de carros e roupas. Há também uma nova
forma de apreciar o belo e de produzir arte por meio de aplicativos como o
Instagram. A identidade das pessoas é forjada por algum tipo de concatenação
entre a sua participação virtual nas mídias sociais e sua atividade no mundo
concreto. Esta fornece o material àquela e vice-versa, pois organizamos grande parte
de nossas atividades coletivas do mundo concreto pelo encontro virtual. Soa
banal ou fútil demais a muitos a importância que damos à forma como nos
apresentamos socialmente na internet, que não passam, dirão alguns, de meras
ilusões que criamos aos outros e a nós mesmos. O fato é que não é só a
identidade social que está em jogo mas nossa identidade ética. Isto é, uma vida plena, realizada, passa hoje pela criação
de uma conexão entre nossas experiências com a sua exposição e contato com as
dos outros no mundo sociovirtual.
Com
relação ao aspecto da participação e organização social é que se manifesta o
que Jenkins conceitua como convergência
de meios e cultura participativa.
Eles indicam que se produzem hoje tanto eventos públicos quanto debates, material
informativo, humorístico ou artístico, criado e distribuído pelo meio digital,
etc. O momento anterior da comunicação brasileira tinha o predomínio de grandes
burocracias da informação, representadas notoriamente por organizações como a
Folha de São Paulo e pela Rede Globo no formato impresso e televisivo. Era
quase impossível à vasta maioria da população sair da sua posição de
passividade perante aquilo que lhe ofereciam, sem o que muitos ficariam sem
informação ou cultura alguma.
Na
cultura digital, a construção do conhecimento que se possibilita a partir de um
formato mais horizontal entre as pessoas é o que Jenkins incorpora no seu
conceito de inteligência coletiva. A
Wikipédia é um exemplo muito interessante de rede em que todos os usuários com
acesso à enciclopédia que o queiram podem modificá-la, expandindo ou corrigindo
o conteúdo que é alterado instantaneamente. O resultado, nesse caso, me parece
extremamente positivo. O conteúdo é via de regra relevante, em especial na
edição do website em língua inglesa, cujo maior acesso global gera também mais
material e revisões oriundas de todos os cantos. Ademais, mesmo em suas falhas
a Wikipédia nos mostra algo que me parece muito valioso: a humanidade da comunicação. Sua falibilidade, imprecisão ou o
possível enviesamento filosófico, religioso e político do informante, por
exemplo. Ela nos mostra que as enciclopédias são, em última análise, escritas
por pessoas, o que não nos dá soluções imediatas, como as do relativismo total onde
qualquer opinião vale, mas sim problemas. Devemos checar fontes, colidir informações
de diversos lugares e, ao fim e ao cabo, aceitarmos a possibilidade do engano e
da incapacidade do saber totalmente preciso.
Nesses
quase trinta anos de existência, se contarmos a partir da criação da chamada World Wide Web em 1990, a internet já
deu vazão a opiniões sobre si de todos os tipos. Pode-se afirmar que houve uma
tendência mais otimista em seus primórdios, dadas as possibilidades mais
propriamente técnicas que até hoje aparecem
a cada dia e que ainda nos espantam por vezes. No entanto, a sua crescente
onipresença levou, como é de se supor em qualquer revolução dessa natureza, a
aspectos negativos e ao surgimento de um punhado de opiniões mais apocalípticas
do que redentoras. Nesse sentido é curioso observarmos as duas versões da
música Pela Internet, feitas por
Gilberto Gil, pois parecem refletir muito bem os dois mencionados momentos que
nossa cultura vivenciou, primeiro nos anos 1990 e agora, desde 2010.
Na
música mais antiga, Gil parece
estar tratando da internet que despontava em 1996 mas com abrangência
infinitamente menor à de hoje, e da relação com os costumes típicos do seu
local. Para tanto, faz uma mistura de termos nativos do Brasil, como
referências ao candomblé, com os anglicismos chamados comumente de
"internetês" que se popularizavam. O uso da expressão navegar nos remete ao limiar entre as
duas culturas, digital e “analógica”. A figura da navegação na
internet se faz por espécie de analogia ao uso de um instrumento consolidado na
cultura anterior para explorar o mundo concreto, e Gil brinca dizendo que com
alguns bytes se monta uma jangada
para velejar. A menção a
várias cidades do globo nos remete à velocidade com que podemos nos comunicar
com pessoas distantes geograficamente. Minhas mensagens chegam no mesmo segundo
a onde quer que seja, Taipé, Helsinque ou Araquari.
No entanto, as contradições do novo mundo também são
pinceladas pelo artista. Com a prática suspeita do policial que
comunica sobre o videopôquer e o
vírus que é solto de um lado do mundo a outro, da Itália ao Japão, percebem-se,
mesmo em meio ao ritmo e melodia alegres de sua música, alguns dos usos humanos
moralmente questionáveis no mundo digital, também mais facilmente disponíveis
aos homens pela comunicação facilitada, evidentemente. Estamos rodeados de possibilidades e também ameaças,
geralmente invisíveis, e, no entanto, a impressão é que essa primeira versão
contém muito mais otimismo do que uma visão atual sobre o fenômeno.
Já a recente música de Gil começa
evidenciando a expansão quantitiva da rede: os gigas agora são teras.
Todos consomem produtos materiais ou intangíveis (como as músicas de Gil) por
meio dos cliques, mas as possibilidades de realizar praticamente tudo o que se
fazia antes tomando o caminho do centro moldam também nossas necessidades. Nos
voltamos à lista de aplicativos de celular à procura de auxílio para qualquer
atividade que nos surja pois sabemos que haverá lá algum a nos facilitar a
tarefa. Os termos comerciais, associados às poucas e gigantes corporações como
Facebook e Google, não só são diferentes dos de 1996, mas estão na boca de todo
o povo brasileiro, seja rico seja pobre, da cidade ou do campo.
No
entanto, a música termina com a hesitação de alguém que perdeu sua conexão. Ela
certamente é pensada aqui pelo artista em sua dupla acepção, literal e
figurativa. A ausência pessoal das redes ou a falta de contato com algum
próximo, mesmo que por poucos instantes, pode trazer muita ansiedade; pode nos fazer
deixar de realizar algo ou deixar sem a informação e cultura, atividades que
seriam possíveis pela via física ou analógica; ou, enfim, nos deixar sem a
antiga capacidade de nos abstrairmos para gozar do ócio naqueles poucos lapsos do
dia-a-dia, para refletir ou mesmo simplesmente relaxar; para fixar-se sobre
nada. Sem música aos ouvidos, sem luzes tocadas e gerenciadas com os dedos. Sem
risos, corpos sexualizados, mortes violentas, crimes novelizados, manchetes
escandalizantes...
Pela internet se destroem a imagem pública de possíveis
inocentes, cometem-se crimes de impacto global, frauda-se e infiltra-se na vida
pessoal de todos - que a oferecem abertamente a quem queira se infiltrar,
diga-se. A internet faz adoecer e alienar do mundo social concreto; retira
empregos de desfavorecidos; reforça a desigualdade material por meio do acesso
desigual à informação e a desigualdade simbólica pelas representações de
superioridade social alcançadas com o dinheiro; estimula a desinformação pelo
acesso universal à internet sem um correspondente acesso à formação educacional
de qualidade...
Enfim. Ao abordá-la, podemos tecer céus e infernos. Em
sua infinita ambiguidade, mais e mais evidente no atual momento, e face às
incertezas sobre o que nos reserva no futuro, algo ao menos nos resta de certo
sobre a cultura digital: ela não pode ser ignorada.
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