CULTURA DIGITAL, POR LUAN FERNANDO DIAS.
O conceito de cultura digital não está consolidado.
Aproxima-se de outros como sociedade da informação, cibercultura, revolução
digital, era digital. Cada um deles, utilizado por determinados autores,
pensadores e ativistas, demarca esta época, quando as relações humanas são
fortemente mediadas por tecnologias e comunicações digitais.
A Wikipedia não registra a expressão nos idiomas inglês e
espanhol. Em português, há um verbete que demarca o surgimento da cultura
digital no pós-guerra, quando tem início o processo de digitalização,
materializado no ambiente de processamento de dados que passa a ser dominado
por grandes máquinas de computar.
O sociólogo espanhol Manuel Castells, em dossiê publicado
pela revista Telos, mantida pela Fundación Telefónica, define a cultura digital
em seis tópicos:
1. Habilidade para comunicar ou mesclar qualquer produto
baseado em uma linguagem comum digital;
2. Habilidade para comunicar desde o local até o global
em tempo real e, vice-versa, para poder diluir o processo de interação;
3. Existência de múltiplas modalidades de comunicação;
4. Interconexão de todas as redes digitalizadas de bases
de dados ou a realização do sonho do hipertexto de Nelson com o sistema de
armazenamento e recuperação de dados, batizado como Xanadú, em 1965;
5. Capacidade de reconfigurar todas as configurações
criando um novo sentido nas diferentes camadas dos processo de comunicação;
6. Constituição gradual da mente coletiva pelo trabalho
em rede, mediante um conjunto de cérebros sem limite algum. Neste ponto, me
refiro às conexões entre cérebros em rede e a mente coletiva.
Durante o Seminário Internacional de Diversidade Cultural
foi promovido um processo participativo de construção de uma agenda de cultura
Digital. Os pesquisadores e ativistas Bianca Santana e Sergio Amadeu da
Silveira sistematizaram um texto final que conceitua cultura digital:
“Reunindo
ciência e cultura, antes separadas pela dinâmica das sociedades industriais,
centrada na digitalização crescente de toda a produção simbólica da humanidade,
forjada na elação ambivalente entre o espaço e o ciberespaço, na alta
velocidade das redes nformacionais, no ideal de interatividade e de liberdade
recombinante, nas práticas de simulação, na obra inacabada e em inteligências
coletivas, a cultura digital é uma realidade de uma mudança de era. Como toda
mudança, seu sentido está em disputa, sua aparência caótica não pode esconder
seu sistema, mas seus processos, cada vez mais auto-organizados e emergentes,
horizontais, formados como descontinuidades articuladas, podem ser assumidos
pelas comunidades locais, em seu caminho de virtualização, para ampliar sua
fala, seus costumes e seus interesses. A cultura digital é a cultura da
contemporaneidade”.
Durante o período em que esteve à frente do Ministério da
Cultura, Gilberto Gil participou de inúmeros eventos voltados à discussão da
cultura forjada pelas redes interconectadas, pelos recursos digitais. Em uma de
suas falas mais marcantes , em aula magna proferida na Universidade
de São Paulo, Gil também faz um esforço de conceituar o que seria a cultura
digital:
“Novas e velhas tradições, signos locais e globais,
linguagens de todos os cantos são bem-vindos a este curto-circuito
antropológico. A cultura deve ser pensada neste jogo, nessa dialética
permanente entre tradição e invenção, nos cruzamentos entre matrizes muitas
vezes milenares e tecnologias de ponta, nas três dimensões básicas de sua
existência: a dimensão simbólica, a dimensão de cidadania e inclusão, e a
dimensão econômica. Atuar em cultura digital concretiza essa filosofia, que
abre espaço para redefinir a forma e o conteúdo das políticas culturais, e
transforma o Ministério da Cultura em ministério da liberdade, ministério da
criatividade, o ministério da ousadia, ministério da contemporaneidade.
Ministério, enfim, da Cultura Digital e das Indústrias Criativas. Cultura
digital é um conceito novo. Parte da idéia de que a revolução das tecnologias
digitais é, em essência, cultural. O que está implicado aqui é que o uso de
tecnologia digital muda os comportamentos. O uso pleno da Internet e do
software livre cria fantásticas possibilidades de democratizar os acessos à
informação e ao conhecimento, maximizar os potenciais dos bens e serviços
culturais, amplificar os valores que formam o nosso repertório comum e,
portanto, a nossa cultura, e potencializar também a produção cultural, criando
inclusive novas formas de arte”.
Assim, o Fórum da Cultura Digital Brasileira é também um
meta-fórum, porque uma de suas tarefas é debater este conceito, do ponto de
vista teórico, mas principalmente como fundamento para o desenvolvimento de
políticas públicas.
No texto de Amadeu e Santana e na fala de Gil a ideia de
cultura digital como uma cultura contemporânea (no caso, Gil fala em
contemporaneidade) se destaca. “Seria a cultura digital, então, a cultura deste
nosso tempo?”: Podemos nos questionar. Mesmo sem termos à mão um conceito
fechado, sabemos que a ideia de cultura digital com a qual trabalharemos é
inclusiva, posto que incorpora os atores cuja cultura de uso e práticas emergem
integralmente do mundo digital (nerds, hackers, gamers, produsers, entre tantos
outros), mas também aqueles cuja vivência é “mais instrumental”, seja porque
ainda ligados à indústria cultural do século XX ou mesmo porque adeptos das
práticas tradicionais e populares.
É justamente essa visão que nos permitirá debater e,
talvez, compreender, se existe – ou se é apenas uma miragem – uma cultura
digital brasileira; se vivemos mesmo em uma sociedade que não teme a quebra de
paradigmas ocasionada pela revolução digital; e se, pelo contrário, vivemos em
uma sociedade antropofágica que desafia este tempo, fascinada, como o fez em
outras épocas com a cultura pop (tropicalismo) e o pensamento religioso do
incauto Bispo Sardinha (como recuperado por Oswald de Andrade no Manifesto
Antropófago).
A inteligência coletiva, por
sua vez, é a somatória das inteligências individuais, que compartilhadas por
toda a sociedade.
Desenvolvido por Pierre Lévy, o
conceito de inteligência coletiva possibilita o partilhamento da memória, da
percepção e da imaginação, resultando na aprendizagem coletiva e na troca de conhecimentos.
Inteligência coletiva é toda
forma de pensar e compartilhar seus conhecimentos por meio de recursos
mecânicos como a internet. Neste exemplo da internet, podemos considerar o site
Wikipedia, que tem conteúdos construídos pelos próprios usuários que interagem
e acessam a página.
A inteligência coletiva,
portanto, é um princípio em que as inteligências individuais são somadas e
compartilhadas por um grupo de pessoas ou pela sociedade como um todo. Trata-se
de um conceito que foi potencializado e ganhou muita força a partir do desenvolvimento
de novas tecnologias de comunicação.
Cultura participativa, por seu turno, é uma expressão designada para representar a
forma como a sociedade contemporânea desde o surgimento e adesão popular da Internet
tem se distanciado cada vez mais da condição de receptora passiva. Produzir
conhecimento e disseminar informações e ideias tornou-se uma realidade
recorrente. Segundo Henry Jenkins, um dos mais importantes e influentes
pesquisadores da mídia na atualidade, o público encara a “Internet como um
veículo para ações coletivas - soluções de problemas, deliberação pública e
criatividade alternativa”. A cultura participativa propiciada pelo caráter
interativo da Internet é uma mudança no modo como as pessoas se relacionam com
os meios de comunicação, o que faz com que os papéis de produtores e
consumidores de informação se alterem.
Já a convergência de meio ou convergência midiática, é um conceito desenvolvido por Henry Jenkins e designa uma
tendência que os meios de comunicação estão aderindo para poder se adaptar
a internet, consiste em usar este suporte como canal para distribuição de seu
produto. Assim os outros tipos de mídia podem ser encontrados
na internet. O jornalismo muitas vezes absorve as novas tecnologias
para o seu aprimoramento e eficácia, tendo nascido de uma grande invenção que
foi a prensa tipográfica, criada pelos chineses e depois aperfeiçoada por Johannes Guttenberg. A fotografia até hoje usada, há muito tempo habita as
páginas dos jornais ajudando como complemento da comunicação escrita. O rádio e
a televisão nos seus primórdios já exibiam conteúdo jornalístico. Com o tempo
esses veículos construíram linguagens diferentes dependentes de suas
características.
No
que propõe Pierre Levy (2000), a Terra foi o primeiro grande espaço de
significação aberto à nossa espécie. Um segundo espaço, o Território, foi
inventado a partir do Neolítico. Nesse, os modos de conhecimento baseiam-se na
escrita e o centro da existência é o vínculo com uma entidade territorial. As
instituições nas quais vivemos são igualmente territórios, com suas
hierarquias, burocracias, sistemas de regras, fronteiras, lógicas de pertença
ou de exclusão.
Pierre Levy (2000) ainda acredita que saímos do totalitarismo
para a era do conhecimento. Técnicas se transformaram em potencialidades. Temos
hoje uma abordagem mais cognitiva das organizações, em que as pessoas são
incitadas a dar suas contribuições, assumindo o controle das mídias. Nesse
sentido, Jenkins (2009) entende que nos últimos anos, a indústria midiática
parecia em guerra com os consumidores, no sentido de tentar forçá-los a voltar
a antigas relações e à obediência a normas sedimentadas.
De acordo com Levy (2000), a “engenharia do laço social” é a
arte de valorizar ao máximo a diversidade das qualidades humanas. Inteligência
coletiva, para ele, é um processo de crescimento, de retomada de
singularidades. Quando valorizamos o outro, desenvolvemos nele sentimentos de
reconhecimento. Não se trata de substituir o homem, mas de promover a
construção de coletivos inteligentes, nos quais as potencialidades sociais de
cada um poderão desenvolver-se e ampliar de maneira recíproca.
Em qualquer lugar há inteligência. Qualquer um é capaz de
produzir conhecimento, de gerar informação de relevância. O outro é alguém que
sabe as coisas que eu não sei. Na era do conhecimento, deixar de reconhecer o
outro em sua inteligência é recusar-lhe sua verdadeira identidade social.
(LEVY, 2000, p. 30) Jenkins concorda com esse ponto de vista. Nenhum de nós
sabe tudo; cada um de nós sabe alguma coisa; e podemos juntar as peças, se
associarmos nossos recursos e unirmos nossas habilidades. (JENKINS, 2009)
Pierre Levy (2000) leva em consideração que a redefinição de
identidades e das regras do jogo social se dará por ocasião de interações
cooperativas no ciberespaço. Esse projeto convoca a um novo
humanismo, em que devemos nos conhecer para pensarmos juntos. Sujeitos
cognitivos, abertos, capazes de iniciativa, imaginação e de reação rápidas
asseguram seu sucesso em um ambiente altamente cognitivo.
Jenkins (2009) vai mais além ao conceituar cultura da
convergência, a qual representa uma transformação cultural à medida que
consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em
meio a conteúdos de mídias dispersos. Ele ainda afirma que as mídias vêm sendo
moldadas para algo que ele chama de economia afetiva, em que o consumidor ideal
é ativo, comprometido emocionalmente e parte de uma rede social.
Howard Rheingold (2012) fala de um cultura participativa, em
que uma parcela significativa da população pode participar da produção de
materiais culturais. Ele enfatiza o empoderamento sem precedentes que o know-how digital
pode conceder, criando um senso de pertença e participação nos usuários.
Possibilita aos internautas adquirir habilidades para se envolver na vida
cívica de suas comunidades, construindo uma cultura mais democrática e
diversificada. A recompensa pode vir ainda com um emprego, um companheiro, ou
mesmo, a venda de um produto ou serviço.
Na visão dele, essa “arquitetura de participação” só se torna
vital quando os humanos a usam para fazer coisas. Um “tecido cultural” emerge
da agregação e da interação de milhões de produções criadas individualmente. Em
torno dessa participação digital surgiu um “ecologia cultural”, repleta de
subculturas e episódios para se criar novos significados, influenciando na
agenda cultural, definindo estratégias para atingir os interesses dos usuários.
No entendimento de Jenkins (2009), no momento, estamos
utilizando esse poder coletivo para fins recreativos. Mesmo com um novo modo de
aprendizagem, em que a educação se assemelha mais a uma rede, ainda há pouca
instrução explícita. Rheingold (2012) refere-se aos gêneros criativos, dizendo
que poderão anunciar a forma como muitas pessoas aprenderão habilidades
necessárias no futuro. O modo como essas diversas transições evoluem irá
determinar o equilíbrio de poder na próxima era.
A convergência altera a lógica como a indústria midiática
opera, segundo Jenkins (2009). Ela compreende uma apropriação popular, mas
também uma tática empresarial. Alguns consumidores têm mais habilidade para
participar desse processo, mesmo que as corporações ainda exerçam maior poder.
Cabe a nós pensar o porquê de as mídias estarem apoiando novas formas de
engajamento.
Jenkins (2009) se questiona sobre como manter o potencial da
cultura participativa na esteira da crescente concentração das mídias. Howard
Rheingold (2012) nos leva a crer que os cidadãos comuns são, na maioria das
vezes, travados, quando desejam participar da produção. Ainda vivemos em um
mundo em que consumimos principalmente conteúdos produzidos por empresas
midiáticas. Se o público não tiver ideia das discussões, terá pouco ou nada a
dizer a respeito das decisões tomadas.
Critica
similar se percebe da música Pela Internet, de Gilberto Gil, cuja nova
ganhou versos sobre Facebook, Facetime, WhatsApp, Waze, Instagram, etc.
"O pensamento é nuvem/ o movimento/ O monge no convento/ Aguarda o
advento de Deus pelo iPhone", cantou em "Pela internet 2", uma versão
mais crítica do que aquela "apologética" que fez sucesso na década de
1990.
Gilberto Gil não é apenas um dos mais importantes nomes da música
brasileira, como também é antenado quando o assunto é tecnologia.
Em 1996, ele realizou um feito que posteriormente viraria tendência da
indústria fonográfica. Gil foi o primeiro artista brasileiro a ter seu show
transmitido ao vivo pela internet. Na ocasião, apresentou pela primeira vez a
música Pela Internet, que estaria
presente em seu álbum Quanta, lançado
meses depois.
A canção fala sobre o impacto e as facilidades da internet. Menciona
websites, vírus e outros termos que seriam cada vez mais usados a partir
daquele momento. Foi batizada em homenagem a Pelo Telefone, música lançada em 1916 considerada por muitos o
primeiro samba da história.
Hodiernamente, pouco mais de 21 anos após seu lançamento original, Gil
apresentou, também ao vivo, uma nova versão da música. Aconteceu em um evento
fechado para convidados no Rio de Janeiro. O show foi transmitido através do
canal oficial do cantor no Youtube.
Segundo o próprio. “a gente vai ficando velho e o mundo vai ficando
novo”. Intitulada Pela Internet 2, a
canção inédita, com a mesma base instrumental e melódica da original, menciona
redes sociais como Facebook, aplicativos como o Waze e critica a imensidão de informações na qual estamos
mergulhados.
O pensamento agora é mais “Black
Mirror”: “As imperfeições humanas se multiplicam”
A canção original é uma apologia à internet, que na época conquistava
cada vez pessoas e lugares pelo Brasil. A letra exalta o encurtamento das
distâncias e o espaço democrático e horizontal que a rede promove. Mas,
passados 21 anos, as coisas mudaram um pouco de face para Gil.
A importância que o digital assumiu para a sociedade, tal como os
aplicativos móveis e suas constantes atualizações são debatidos em Pela Internet 2. Em coletiva realizada
logo após o término do evento, Gil apontou detalhes sobre a letra nova:
Nessa
nova letra, a dose apologética diminuiu e a crítica aumentou. É natural que
assim seja, porque a internet virou um pandemônio, um estímulo a esse
narcisismo individualista que se desdobra em política de ódio.
Mas não foi só isso. O show foi inteiramente tematizado pelos avanços
tecnológicos. Todas as músicas tocadas abordam esse assunto. A setlist também
contou com as composições “Cérebro Eletrônico“, “Metáfora“, “Futurível” e
“Queremos Saber“, todas de Gil, e ainda com uma brincadeira com o verso “I
can’t get no satisfaction”, dos Rolling Stones. No lugar de “satisfaction”, Gil
usou a palavra “connection”, criticando o medo da sociedade de ficar longe da
sociedade virtual.
Ainda
em seu depoimento, o cantor falou sobre os malefícios do mundo conectado em
rede. “As imperfeições humanas se multiplicam nessa multiplicação de
possibilidades, de contato, de acesso e de informação”, disse.
BIBLIOGRAFIA:
JENKINS, Henry. Cultura da Convergência.
Tradução Suzana Alexandria.2ª ed. São Paulo: Aleph, 2009
LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva:
por uma antropologia do ciberespaço. 3ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
RHEINGOLD, Howard. Net Smart: How to Thrive Online.
2012.
Luan Fernando Dias
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