sábado, 2 de março de 2019

CULTURA DIGITAL, POR LUAN FERNANDO DIAS.

O conceito de cultura digital não está consolidado. Aproxima-se de outros como sociedade da informação, cibercultura, revolução digital, era digital. Cada um deles, utilizado por determinados autores, pensadores e ativistas, demarca esta época, quando as relações humanas são fortemente mediadas por tecnologias e comunicações digitais.
A Wikipedia não registra a expressão nos idiomas inglês e espanhol. Em português, há um verbete que demarca o surgimento da cultura digital no pós-guerra, quando tem início o processo de digitalização, materializado no ambiente de processamento de dados que passa a ser dominado por grandes máquinas de computar.
O sociólogo espanhol Manuel Castells, em dossiê publicado pela revista Telos, mantida pela Fundación Telefónica, define a cultura digital em seis tópicos:
1. Habilidade para comunicar ou mesclar qualquer produto baseado em uma linguagem comum digital;
2. Habilidade para comunicar desde o local até o global em tempo real e, vice-versa, para poder diluir o processo de interação;
3. Existência de múltiplas modalidades de comunicação;
4. Interconexão de todas as redes digitalizadas de bases de dados ou a realização do sonho do hipertexto de Nelson com o sistema de armazenamento e recuperação de dados, batizado como Xanadú, em 1965;
5. Capacidade de reconfigurar todas as configurações criando um novo sentido nas diferentes camadas dos processo de comunicação;
6. Constituição gradual da mente coletiva pelo trabalho em rede, mediante um conjunto de cérebros sem limite algum. Neste ponto, me refiro às conexões entre cérebros em rede e a mente coletiva.

Durante o Seminário Internacional de Diversidade Cultural foi promovido um processo participativo de construção de uma agenda de cultura Digital. Os pesquisadores e ativistas Bianca Santana e Sergio Amadeu da Silveira sistematizaram um texto final que conceitua cultura digital:
“Reunindo ciência e cultura, antes separadas pela dinâmica das sociedades industriais, centrada na digitalização crescente de toda a produção simbólica da humanidade, forjada na elação ambivalente entre o espaço e o ciberespaço, na alta velocidade das redes nformacionais, no ideal de interatividade e de liberdade recombinante, nas práticas de simulação, na obra inacabada e em inteligências coletivas, a cultura digital é uma realidade de uma mudança de era. Como toda mudança, seu sentido está em disputa, sua aparência caótica não pode esconder seu sistema, mas seus processos, cada vez mais auto-organizados e emergentes, horizontais, formados como descontinuidades articuladas, podem ser assumidos pelas comunidades locais, em seu caminho de virtualização, para ampliar sua fala, seus costumes e seus interesses. A cultura digital é a cultura da contemporaneidade”.

Durante o período em que esteve à frente do Ministério da Cultura, Gilberto Gil participou de inúmeros eventos voltados à discussão da cultura forjada pelas redes interconectadas, pelos recursos digitais. Em uma de suas falas mais marcantes , em aula magna proferida na Universidade de São Paulo, Gil também faz um esforço de conceituar o que seria a cultura digital:
“Novas e velhas tradições, signos locais e globais, linguagens de todos os cantos são bem-vindos a este curto-circuito antropológico. A cultura deve ser pensada neste jogo, nessa dialética permanente entre tradição e invenção, nos cruzamentos entre matrizes muitas vezes milenares e tecnologias de ponta, nas três dimensões básicas de sua existência: a dimensão simbólica, a dimensão de cidadania e inclusão, e a dimensão econômica. Atuar em cultura digital concretiza essa filosofia, que abre espaço para redefinir a forma e o conteúdo das políticas culturais, e transforma o Ministério da Cultura em ministério da liberdade, ministério da criatividade, o ministério da ousadia, ministério da contemporaneidade. Ministério, enfim, da Cultura Digital e das Indústrias Criativas. Cultura digital é um conceito novo. Parte da idéia de que a revolução das tecnologias digitais é, em essência, cultural. O que está implicado aqui é que o uso de tecnologia digital muda os comportamentos. O uso pleno da Internet e do software livre cria fantásticas possibilidades de democratizar os acessos à informação e ao conhecimento, maximizar os potenciais dos bens e serviços culturais, amplificar os valores que formam o nosso repertório comum e, portanto, a nossa cultura, e potencializar também a produção cultural, criando inclusive novas formas de arte”.

Assim, o Fórum da Cultura Digital Brasileira é também um meta-fórum, porque uma de suas tarefas é debater este conceito, do ponto de vista teórico, mas principalmente como fundamento para o desenvolvimento de políticas públicas.
No texto de Amadeu e Santana e na fala de Gil a ideia de cultura digital como uma cultura contemporânea (no caso, Gil fala em contemporaneidade) se destaca. “Seria a cultura digital, então, a cultura deste nosso tempo?”: Podemos nos questionar. Mesmo sem termos à mão um conceito fechado, sabemos que a ideia de cultura digital com a qual trabalharemos é inclusiva, posto que incorpora os atores cuja cultura de uso e práticas emergem integralmente do mundo digital (nerds, hackers, gamers, produsers, entre tantos outros), mas também aqueles cuja vivência é “mais instrumental”, seja porque ainda ligados à indústria cultural do século XX ou mesmo porque adeptos das práticas tradicionais e populares.
É justamente essa visão que nos permitirá debater e, talvez, compreender, se existe – ou se é apenas uma miragem – uma cultura digital brasileira; se vivemos mesmo em uma sociedade que não teme a quebra de paradigmas ocasionada pela revolução digital; e se, pelo contrário, vivemos em uma sociedade antropofágica que desafia este tempo, fascinada, como o fez em outras épocas com a cultura pop (tropicalismo) e o pensamento religioso do incauto Bispo Sardinha (como recuperado por Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago).
A inteligência coletiva, por sua vez, é a somatória das inteligências individuais, que compartilhadas por toda a sociedade.
Desenvolvido por Pierre Lévy, o conceito de inteligência coletiva possibilita o partilhamento da memória, da percepção e da imaginação, resultando na aprendizagem coletiva e na troca de conhecimentos.
Inteligência coletiva é toda forma de pensar e compartilhar seus conhecimentos por meio de recursos mecânicos como a internet. Neste exemplo da internet, podemos considerar o site Wikipedia, que tem conteúdos construídos pelos próprios usuários que interagem e acessam a página.
A inteligência coletiva, portanto, é um princípio em que as inteligências individuais são somadas e compartilhadas por um grupo de pessoas ou pela sociedade como um todo. Trata-se de um conceito que foi potencializado e ganhou muita força a partir do desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação.
Cultura participativa, por seu turno, é uma expressão designada para representar a forma como a sociedade contemporânea desde o surgimento e adesão popular da Internet tem se distanciado cada vez mais da condição de receptora passiva. Produzir conhecimento e disseminar informações e ideias tornou-se uma realidade recorrente. Segundo Henry Jenkins, um dos mais importantes e influentes pesquisadores da mídia na atualidade, o público encara a “Internet como um veículo para ações coletivas - soluções de problemas, deliberação pública e criatividade alternativa”. A cultura participativa propiciada pelo caráter interativo da Internet é uma mudança no modo como as pessoas se relacionam com os meios de comunicação, o que faz com que os papéis de produtores e consumidores de informação se alterem.
Já a convergência de meio ou convergência midiática, é um conceito desenvolvido por Henry Jenkins e designa uma tendência que os meios de comunicação estão aderindo para poder se adaptar a internet, consiste em usar este suporte como canal para distribuição de seu produto. Assim os outros tipos de mídia podem ser encontrados na internet. O jornalismo muitas vezes absorve as novas tecnologias para o seu aprimoramento e eficácia, tendo nascido de uma grande invenção que foi a prensa tipográfica, criada pelos chineses e depois aperfeiçoada por Johannes Guttenberg. A fotografia até hoje usada, há muito tempo habita as páginas dos jornais ajudando como complemento da comunicação escrita. O rádio e a televisão nos seus primórdios já exibiam conteúdo jornalístico. Com o tempo esses veículos construíram linguagens diferentes dependentes de suas características.
No que propõe Pierre Levy (2000), a Terra foi o primeiro grande espaço de significação aberto à nossa espécie. Um segundo espaço, o Território, foi inventado a partir do Neolítico. Nesse, os modos de conhecimento baseiam-se na escrita e o centro da existência é o vínculo com uma entidade territorial. As instituições nas quais vivemos são igualmente territórios, com suas hierarquias, burocracias, sistemas de regras, fronteiras, lógicas de pertença ou de exclusão.
Pierre Levy (2000) ainda acredita que saímos do totalitarismo para a era do conhecimento. Técnicas se transformaram em potencialidades. Temos hoje uma abordagem mais cognitiva das organizações, em que as pessoas são incitadas a dar suas contribuições, assumindo o controle das mídias. Nesse sentido, Jenkins (2009) entende que nos últimos anos, a indústria midiática parecia em guerra com os consumidores, no sentido de tentar forçá-los a voltar a antigas relações e à obediência a normas sedimentadas.
De acordo com Levy (2000), a “engenharia do laço social” é a arte de valorizar ao máximo a diversidade das qualidades humanas. Inteligência coletiva, para ele, é um processo de crescimento, de retomada de singularidades. Quando valorizamos o outro, desenvolvemos nele sentimentos de reconhecimento. Não se trata de substituir o homem, mas de promover a construção de coletivos inteligentes, nos quais as potencialidades sociais de cada um poderão desenvolver-se e ampliar de maneira recíproca.
Em qualquer lugar há inteligência. Qualquer um é capaz de produzir conhecimento, de gerar informação de relevância. O outro é alguém que sabe as coisas que eu não sei. Na era do conhecimento, deixar de reconhecer o outro em sua inteligência é recusar-lhe sua verdadeira identidade social. (LEVY, 2000, p. 30) Jenkins concorda com esse ponto de vista. Nenhum de nós sabe tudo; cada um de nós sabe alguma coisa; e podemos juntar as peças, se associarmos nossos recursos e unirmos nossas habilidades. (JENKINS, 2009)
Pierre Levy (2000) leva em consideração que a redefinição de identidades e das regras do jogo social se dará por ocasião de interações cooperativas no ciberespaço. Esse projeto convoca a um novo humanismo, em que devemos nos conhecer para pensarmos juntos. Sujeitos cognitivos, abertos, capazes de iniciativa, imaginação e de reação rápidas asseguram seu sucesso em um ambiente altamente cognitivo.
Jenkins (2009) vai mais além ao conceituar cultura da convergência, a qual representa uma transformação cultural à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos de mídias dispersos. Ele ainda afirma que as mídias vêm sendo moldadas para algo que ele chama de economia afetiva, em que o consumidor ideal é ativo, comprometido emocionalmente e parte de uma rede social.
Howard Rheingold (2012) fala de um cultura participativa, em que uma parcela significativa da população pode participar da produção de materiais culturais. Ele enfatiza o empoderamento sem precedentes que o know-how digital pode conceder, criando um senso de pertença e participação nos usuários. Possibilita aos internautas adquirir habilidades para se envolver na vida cívica de suas comunidades, construindo uma cultura mais democrática e diversificada. A recompensa pode vir ainda com um emprego, um companheiro, ou mesmo, a venda de um produto ou serviço.
Na visão dele, essa “arquitetura de participação” só se torna vital quando os humanos a usam para fazer coisas. Um “tecido cultural” emerge da agregação e da interação de milhões de produções criadas individualmente. Em torno dessa participação digital surgiu um “ecologia cultural”, repleta de subculturas e episódios para se criar novos significados, influenciando na agenda cultural, definindo estratégias para atingir os interesses dos usuários.
No entendimento de Jenkins (2009), no momento, estamos utilizando esse poder coletivo para fins recreativos. Mesmo com um novo modo de aprendizagem, em que a educação se assemelha mais a uma rede, ainda há pouca instrução explícita. Rheingold (2012) refere-se aos gêneros criativos, dizendo que poderão anunciar a forma como muitas pessoas aprenderão habilidades necessárias no futuro. O modo como essas diversas transições evoluem irá determinar o equilíbrio de poder na próxima era.
A convergência altera a lógica como a indústria midiática opera, segundo Jenkins (2009). Ela compreende uma apropriação popular, mas também uma tática empresarial. Alguns consumidores têm mais habilidade para participar desse processo, mesmo que as corporações ainda exerçam maior poder. Cabe a nós pensar o porquê de as mídias estarem apoiando novas formas de engajamento.
Jenkins (2009) se questiona sobre como manter o potencial da cultura participativa na esteira da crescente concentração das mídias. Howard Rheingold (2012) nos leva a crer que os cidadãos comuns são, na maioria das vezes, travados, quando desejam participar da produção. Ainda vivemos em um mundo em que consumimos principalmente conteúdos produzidos por empresas midiáticas. Se o público não tiver ideia das discussões, terá pouco ou nada a dizer a respeito das decisões tomadas.

Critica similar se percebe da música Pela Internet, de Gilberto Gil, cuja nova ganhou versos sobre Facebook, Facetime, WhatsApp, Waze, Instagram, etc.
"O pensamento é nuvem/ o movimento/ O monge no convento/ Aguarda o advento de Deus pelo iPhone", cantou em "Pela internet 2", uma versão mais crítica do que aquela "apologética" que fez sucesso na década de 1990.
Gilberto Gil não é apenas um dos mais importantes nomes da música brasileira, como também é antenado quando o assunto é tecnologia.
Em 1996, ele realizou um feito que posteriormente viraria tendência da indústria fonográfica. Gil foi o primeiro artista brasileiro a ter seu show transmitido ao vivo pela internet. Na ocasião, apresentou pela primeira vez a música Pela Internet, que estaria presente em seu álbum Quanta, lançado meses depois.
A canção fala sobre o impacto e as facilidades da internet. Menciona websites, vírus e outros termos que seriam cada vez mais usados a partir daquele momento. Foi batizada em homenagem a Pelo Telefone, música lançada em 1916 considerada por muitos o primeiro samba da história.
Hodiernamente, pouco mais de 21 anos após seu lançamento original, Gil apresentou, também ao vivo, uma nova versão da música. Aconteceu em um evento fechado para convidados no Rio de Janeiro. O show foi transmitido através do canal oficial do cantor no Youtube.
Segundo o próprio. “a gente vai ficando velho e o mundo vai ficando novo”. Intitulada Pela Internet 2, a canção inédita, com a mesma base instrumental e melódica da original, menciona redes sociais como Facebook, aplicativos como o Waze e critica a imensidão de informações na qual estamos mergulhados.
O pensamento agora é mais “Black Mirror”: “As imperfeições humanas se multiplicam”
A canção original é uma apologia à internet, que na época conquistava cada vez pessoas e lugares pelo Brasil. A letra exalta o encurtamento das distâncias e o espaço democrático e horizontal que a rede promove. Mas, passados 21 anos, as coisas mudaram um pouco de face para Gil.
A importância que o digital assumiu para a sociedade, tal como os aplicativos móveis e suas constantes atualizações são debatidos em Pela Internet 2. Em coletiva realizada logo após o término do evento, Gil apontou detalhes sobre a letra nova:
Nessa nova letra, a dose apologética diminuiu e a crítica aumentou. É natural que assim seja, porque a internet virou um pandemônio, um estímulo a esse narcisismo individualista que se desdobra em política de ódio.
Mas não foi só isso. O show foi inteiramente tematizado pelos avanços tecnológicos. Todas as músicas tocadas abordam esse assunto. A setlist também contou com as composições “Cérebro Eletrônico“, “Metáfora“, “Futurível” e “Queremos Saber“, todas de Gil, e ainda com uma brincadeira com o verso “I can’t get no satisfaction”, dos Rolling Stones. No lugar de “satisfaction”, Gil usou a palavra “connection”, criticando o medo da sociedade de ficar longe da sociedade virtual.
Ainda em seu depoimento, o cantor falou sobre os malefícios do mundo conectado em rede. “As imperfeições humanas se multiplicam nessa multiplicação de possibilidades, de contato, de acesso e de informação”, disse.

BIBLIOGRAFIA:
JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Tradução Suzana Alexandria.2ª ed. São Paulo: Aleph, 2009
LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. 3ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
RHEINGOLD, Howard. Net Smart: How to Thrive Online. 2012.



Luan Fernando Dias
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